✍️ Mozart Rosa e Daddo Moreira
📅 28/08/2020
🕚 12h00
📷 Cleiton Pieruccini, 2016
───── INÍCIO DA PUBLICIDADE
───── FIM DA PUBLICIDADE
Sempre que o fracasso bate à porta é preciso criar um culpado, infelizmente e em grande porcentagem faz parte da cultura brasileira não assumir responsabilidades. É o inimigo externo, é a crise internacional, são os Americanos, o efeito estufa, ainda chegaremos a culpar os Incas Venusianos ou o Satan Goss, inimigo do Jaspion. Enquanto não chega essa época fiquemos com o que nossa criatividade alcança. Daí se criou o mito do empresário de ônibus ou do setor rodoviário em geral, gente contrária as ferrovias. Se esquecem que, quando essa destruição aconteceu, esses empresários não tinham o poder político e econômico que tem hoje. Eram na ocasião ainda muito pequenos. Se esquecem também que esses empresários viviam e vivem de transportar cargas ou pessoas, seja esse transporte feito em ônibus, trem, barcas, dirigíveis, carroças, naves espaciais, seja da forma que for, eles sabem é transportar. Outros mitos também foram criados para justificar o que aconteceu e o povo ingenuamente embarcou.

E o mais lamentável são pessoas que, até hoje e apesar de todas as evidências, insistem nessa tese absurda de culpar os empresários do ônibus pela destruição do transporte ferroviário de passageiros.
E aí temos a história de João Havelange, o homem e mito, que ao se tornar sócio da Viação Cometa e assumir sua direção revoluciona o transporte de passageiros interestadual no país, importando ônibus da GM, com ar condicionado, suspensão a ar e rádio. Ônibus extremamente confortáveis e rápidos, fazendo da ligação Rio x São Paulo, e de outras rotas, uma experiencia prazerosa, usando um marketing agressivo até então inédito para esse segmento de mercado. Essas ações fizeram da Viação Cometa uma líder de mercado e padrão seguido pelas outras empresas do setor, posteriormente levando a fama de ter sido o responsável pelo encerramento do trem ligando o Rio de Janeiro a São Paulo.

Falando sobre o transporte de cargas todo o modelo voltado essencialmente à exportação, com foco no minério e posteriormente no granel, foi criado e imposto com o tempo pelo pessoal da EFCB para o setor. Depois foi aprimorado com a criação da RFFSA e consolidado com a posse de Carlos Aloísio Weber na presidência da mesma em 1974, funcionando até hoje.
Não é um modelo errado, muito pelo contrário, é um modelo vitorioso que tem trazido riquezas para o Brasil. O problema foi o abandono e o sucateamento de outras linhas que não faziam parte desse modelo e que bem operadas poderiam e podem ser extremamente lucrativas. Hoje essas linhas operadas como pequenas ferrovias têm o nome de Short-Lines. E funcionam muito bem em outros países.

A FCA, outro braço da Cia.Vale do Rio Doce, trabalha exatamente como a MRS, sendo que a FCA usa o termo “corredores de exportação”, mas os paradigmas operacionais são os mesmos. Operam e desenvolvem linhas convergentes aos portos, mas dispensam as transversais que podem ter grande valor econômico, sendo indutoras de desenvolvimento econômico para as regiões por onde passam.

Sempre que se pensa em novas ferrovias a primeira coisa que vem à mente é que a nova construção deve ter bitola de 1,60m, como se essa fosse a única condição plausível. O que é um pensamento errado. Um paradigma a ser rompido. 1,60m e 1,00m são bitolas que podem coexistir perfeitamente.


Para o setor como um todo evoluir é preciso repensar isso, trabalhar para unir as redes da atual Rumo à rede da FCA para ganho de escala, criando o conceito de rede e ampliando o conceito de multicargas. Criando ainda mais linhas transversais operadas por novas empresas, pois existe a demanda e existem empresários interessados.

Por incrível que pareça, passados anos do inicio da Guerra das Bitolas que começou com os egressos da EFCB e egressos da EFL, essa batalha implícita continuou. Quando da criação da Ferrovia Norte-Sul novamente se impôs a bitola de 1,60m. Alem dos custos extras oriundos das propinas, lamentavelmente uma coisa corriqueira no Brasil, os custos de implantação por essa opção de bitola elevaram o custo da obra que, até hoje passados mais de 20 anos de seu inicio, não esta pronta.

A TransNordestina é mais um capítulo sem sentido nessa guerra e uma tragédia para a economia e para a engenharia brasileira. Tudo o que podia dar errado deu. Existia uma rede de ferrovias do início do século que bem ou mal operavam e atendiam suas respectivas regiões. Quando da privatização, ocorrida no governo FHC, o grupo que arrematou a malha Nordeste resolveu construir uma grande ferrovia que atenderia a toda aquela região.

Acontece que alguém resolveu que toda essa nova ferrovia deveria ser em bitola de 1,60m, e com trechos em bitola mista. Alguns trechos em bitola métrica foram extintos e até hoje essa ferrovia não está pronta. Se fosse mantida a bitola métrica e corrigissem alguns trechos centenários não teria sido causada essa confusão toda. Transformaram uma questão técnica em uma questão política. Ignoraram a necessidade de raios de curvatura maiores para as bitolas de 1,60m. A bitola métrica necessita raios de curvatura menores, fundamental em um estado montanhoso como Minas Gerais, além de um custo menor de implantação. Por isso a AFTR defende o uso da Bitola Métrica em novos projetos ferroviários do estado do Rio de Janeiro, que eles sejam ligados à rede ainda existente e desativada no estado de Minas Gerais, criando algo até então existente no nome e inexistente na prática. Uma Rede Ferroviária Nacional. Interligada.

E não restringindo isso apenas aos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, mas estendendo essa proposta para todo o Brasil, criando no país o conceito inédito até o momento de Short Lines, alavancadoras de desenvolvimento regional.
Até em outros aspectos a questão das bitolas sofreu influência. Recentemente tentou-se implantar um serviço turístico na região de Miguel Pereira, mais precisamente no trecho da Linha Auxiliar (antiga EF Melhoramentos dao Brazil) entre as estações Miguel Pereira e Governador Portela. A ferrovia foi construída no final do século XIX em bitola métrica, se mantendo assim até os dias de hoje, exceto no trecho operado pela Supervia (até Costa Barros) e pela MRS com seus trens de carga (até Engenheiro Pedreira, onde existe uma ligação com a Linha do Centro da EFCB). Devido a diversos fatores, mais especificamente em não possuir na ocasião material rodante em bitola métrica, a instituição responsável pelo projeto decidiu alargar a bitola nesse trecho de aproximadamente 4,5kms para implantar o serviço turístico, utilizando uma Automotriz, veículo que pode ser descrito como um vagão com propulsão própria, sem necessidade de uma locomotiva para tracioná-la.

Infelizmente todo esse trabalho realizado não teve o resultado esperado, a bitola foi alargada para 1,60m, a ferrovia foi de certa forma descaracterizada, e a posterior administração municipal decidiu não dar apoio ao projeto, optando por trazer um tradicional trem movido a vapor para operar o serviço turístico na cidade. Em bitola métrica. Ou seja, como se fala por aí: “tira casaco, bota casaco”. E nada de concreto sai do papel.
Os exemplos explícitos da Guerra das Bitolas são muitos, mas podemos finalizar com dois exemplos que podem ser atribuídos a essa distinção entre ferrovias de bitolas diferentes:
- Já foi comentado por nós da AFTR sobre a interrupção do ramal Vila Inhomirim há alguns anos, devido à colisão de um caminhão que passava sob um pontilhão da ferrovia. Com os trilhos teoricamente desalinhados e a estrutura comprometida, o tráfego manteve-se interrompido por vários meses. Quando começou um movimento de protestos e mobilização para o retorno do tráfego, o trem voltou a circular, sem nenhuma intervenção aparentemente.
- E pra finalizar temos o caso do Ramal Guapimirim, atualmente operado pela Supervia. Com a pandemia de COVID-19 ocorrida neste ano, por decreto vários trechos ferroviários e estações tiveram o funcionamento paralisado. Com o abrandamento da pandemia, tudo foi voltando à normalidade, mas o ramal Guapimirim não. No próximo dia 01 de setembro está previsto o retorno do funcionamento do ramal, após muitos protestos e ações contra a paralisação.
Mas o que os dois casos tem em comum e a ver com a Guerra das Bitolas ? Óbvio: há várias décadas os trechos em bitola métrica são renegados, mal administrados, não recebem verbas do governo (compromisso de contrato), não são modernizados, não tem melhorias e são o “patinho feio” da operação dos trens metropolitanos no Rio de Janeiro. A concessionária com tudo isso não tem muito interesse em operar os ramais. A circulação é antiquada, ainda como no século XIX (sinalização e aparelhos de mudança de via manuais), o material rodante é antigo e ineficiente (locomotivas a diesel manobreiras ou de carga, que consomem bastante combustível tornando a operação ainda mais onerosa), os horários são esparsos, há falta de segregação das vias e muitos outros fatores que acabam por tornar o funcionamento e manutenção do serviço totalmente não lucrativa e prejudicial, não chegando nem a se sustentar. E olha que demanda suficiente para isso existe, mas e o investimento e modernização ? Não sai do papel, e é em bitola métrica … será coincidência ?

Essa foi a nossa odisséia, a nossa viagem pela Guerra das Bitolas, um assunto pouco discutido mas que até hoje influencia no sucesso e no fracasso das ferrovias, dependendo e infelizmente, é claro, da bitola utilizada.
Gostou? Curtiu ? Comente ! Compartilhe !
Agradecemos a leitura. Até a próxima !
Classificação média