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✍️ Mozart Rosa
📅 03/03/2023
🕚12h00
📷 Trem misto na Ponte Seca (imagem colorizada por IA)

 




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INTRODUÇÃO

Esta postagem pretende trazer algo inédito, algo que pouquíssimos têm conhecimento, contar o que realmente aconteceu com a E.F. Cantagalo.

Pretendemos contar sua história, como ela foi construída, sua importância, e infelizmente seu declínio. E o mais importante as razões reais desse declínio.

Esta é a nossa versão, a qual humildemente admitimos contestações desde que documentadas

Explicaremos os motivos que levaram à sua extinção, abordaremos as lendas em torno dessa extinção e prestaremos uma singela homenagem a um homem que conhecia muito sobre café, mas que sem saber, também sabia muito sobre ferrovias e sabia sobre a extinção da E.F. Cantagalo, além dos prejuízos que isso causou à economia do estado do Rio de Janeiro e do estado de Minas Gerais: o Sr. Ruy Barreto. Guardem esse nome, pois o citaremos em várias partes deste texto.

Fonte: O Globo

Nascido em Muriaé, ele foi um dos maiores exportadores de café do Rio de Janeiro (alguém conhece algum hoje?). Cliente da E.F. Leopoldina, viveu o momento e forneceu muitas informações para este artigo. Com isso, gostaríamos de orientar, prevenir e evitar que pessoas digam que a E.F. Cantagalo foi extinta porque a produção de café em Bom Jardim, Cordeiro e Cantagalo havia se exaurido, o que é uma tremenda inverdade. Até um ex-secretário de Transportes do estado do Rio de Janeiro, falou sobre essa extinção e motivo certa vez, em evento promovido pela Associação Comercial do Rio de Janeiro. No texto explicamos o porquê deste parecer equivocado. Sr. Ruy deve ter se revirado no caixão.

Fazenda de Café no estado do Rio de Janeiro em 1882. Fonte: IMS

Ao ser extinta, a E.F. Cantagalo já não transportava café daquela região há muitos anos, mas era uma linha com um faturamento consistente pelas outras cargas que transportava, inclusive café de outras regiões, e foi extinta de maneira estúpida, como várias outras linhas da E.F. Leopoldina. Sem querer nos gabar, mas se as pessoas ligadas ao governo do estado do Rio de Janeiro, na área de transporte, procurassem pessoas ligadas à AFTR, certamente a situação dos transportes e do desenvolvimento econômico em nosso estado seria outra.

Este texto também é dedicado à população mineira, especificamente aos moradores de cidades da zona da mata, como Muriaé, Ubá, Carangola, Manhuaçu, Cataguases, Leopoldina e Miraí, região que já foi, mas hoje não é das mais ricas do estado de Minas Gerais, e que tinha na E.F. Cantagalo uma escoadora de sua produção, principalmente da produção de café para o porto do Rio de Janeiro.

Sejam bem-vindos(as), esperamos que gostem e desejamos a todos uma excelente leitura!

A VERDADE SOBRE A EXTINÇÃO DA E.F. CANTAGALO

Vamos entender alguns contextos: Porto Novo do Cunha, atual Além-Paraíba, foi uma das mais importantes cidades do Brasil no século XVIII e início do XIX. Esse nome surge a partir de um pequeno cais construído mais adiante, onde fica hoje o município de Carmo, no estado do Rio de Janeiro, por ordem do então governador da província de Minas Gerais, Luiz da Cunha Menezes, em 1784. Esse cais passou a se chamar Porto do Cunha. Todo o ouro que vinha das Minas Gerais passava por ali e descia de barco para a capital, o Rio de Janeiro. Posteriormente, foi construído um novo cais, maior, que passou a se chamar Porto Novo do Cunha.

Estação ferroviária de Porto Novo do Cunha no século XIX). Fonte: Biblioteca Nacional (imagem colorida e restaurada por IA)

Passados os anos, se formou em volta do porto uma cidade que passou a se chamar Além-Paraíba. Com a construção da Estrada de Ferro D. Pedro II, após alcançar Três Rios, foi criado o Ramal de Porto Novo, e construída a estação em 1871. Os trens para o interior de Minas Gerais, na região de Juiz de Fora e de Belo Horizonte, entravam à esquerda em Três Rios ou seguiam por esse ramal até Porto Novo.

Planta de 1909 da EFCB – Folha 234. Fonte: Arquivo Nacional

A antiga Estrada de Ferro Melhoramentos, construída pelo Eng. Paulo de Frontin e posteriormente utilizada pela Leopoldina, construiu uma linha que seguia de Três Rios até Porto Novo, sua estação terminal. Aliás, a Companhia Estrada de Ferro Leopoldina, (sim, esse foi o seu primeiro nome), começa sua história ali, em Porto Novo, no ano de 1872, tendo como projeto alcançar as cidades da zona da mata como Santa Rita da Meia Pataca, hoje Cataguases, Ubá e diversas outras cidades da região, com diversos ramais, entre eles Manhuaçu, Muriaé e Leopoldina, a cidade que deu nome à ferrovia.

Estação ferroviária de Miraí (Mirahy) na década de 1930. Fonte: Prefeitura (imagem colorida e restaurada por IA)

O vídeo abaixo é recomendado apenas para aqueles que têm coração forte. Mostra o passado e o presente da Estação Porto Novo, aquela que foi uma das maiores estações ferroviárias do interior do estado de Minas Gerais. Seu apogeu no passado e sua destruição no presente. É de chorar.

A cidade de Além-Paraíba teve um passado tão glorioso que chegou a ter uma companhia própria de bondes (clique aqui para saber mais).

Fonte: Coleção Allen Morrison

A Companhia Estrada de Ferro Leopoldina conseguia chegar até essas cidades da Zona da Mata, partindo do Rio de Janeiro e passando por Miguel Pereira. Ela usava a linha que originalmente pertenceu à E.F. Melhoramentos do Brasil e chegou a usar também a linha de Petrópolis e a linha da E.F. Cantagalo para atingir essas cidades.

Foi o primeiro caso no Brasil do uso do Direito de Passagem, onde uma ferrovia cede a outra o uso de suas linhas. Como funcionava não sabemos, mas esse direito de passagem permitiu a E.F. Leopoldina enorme desenvolvimento. Nos aqui da AFTR desenvolvemos uma forma moderna de direito de passagem em uma de nossas postagens “Plano de negócios III – Direito de Passagem”.

O NASCIMENTO DA E.F. CANTAGALO

A E.F. Cantagalo é outra história. Obra de Antônio Clemente Pinto, o barão de Nova Friburgo, ela começou de forma independente das demais em 1857, na localidade de Porto das Caixas, onde construiu sua primeira estação, que, como o nome diz, era um porto dos vários existentes dentro da baía de Guanabara na época.

Antônio Clemente Pinto. Fonte: IMS

O barão tinha fazendas de café em Cantagallo (grafia da época), e esse foi o motivo de seu interesse em construir a ferrovia.

Sobre o barão, considerado um dos homens mais ricos do império, segue uma informação que nada tem a ver com a ferrovia, mas mostra sua capacidade empreendedora e seu poder econômico: ele foi o construtor, o primeiro proprietário e primeiro morador do Palácio do Catete. A construção começa em 1858 com a compra dos terrenos e foi até 1866, e seu nome original foi Palácio Nova Friburgo, projetado pelo arquiteto alemão Carl Friedrich Gustav Waehneldt e os jardins projetados pelo paisagista francês Auguste François Marie Glaziou.

Pintura de grandes dimensões, com o Barão de Nova Friburgo, no Palácio do Catete. No detalhe…
… a planta da EF Cantagalo. Imagem: Daddo Moreira, 2023

A primeira ferrovia do Brasil foi a Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará inaugurada em 30 de abril de 1854. Popularmente chamada de Estrada de Ferro Mauá. O trecho inicial ligava o porto de Mauá à estação de Fragoso, no atual município de Magé. O trecho inicial tinha 14,5 km de extensão. Com bitola original de 1,676 m.

A segunda ferrovia do Brasil foi a Estrada de Ferro Recife ao São Francisco, inaugurada em 8 de fevereiro de 1858. A ferrovia estava localizada no estado de Pernambuco e tinha 31,5 km de extensão.

A terceira ferrovia do Brasil foi a Estrada de Ferro D. Pedro II, posteriormente rebatizada de Estrada de Ferro Central do Brasil. A obra se iniciou em 1855, e o primeiro trecho foi finalizado em 1858. Esse trecho, que ligava a cidade do Rio de Janeiro até a região de Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Marapicu, atual, Queimados, tinha extensão de mais de 48 km.

E a quarta ferrovia do Brasil foi a E.F. Cantagalo, sua primeira seção ia de Porto das Caixas até Cachoeiras de Macacu, inaugurada em 1860 em uma grande celebração, com a presença do imperador D. Pedro II.

VEJA TAMBÉM  O motivo do fracasso das ferrovias no Brasil (9 – III) — Quem efetivamente acabou com as ferrovias?
Inauguração da EF Cantagalo. Fonte: Wood-engraving after Godefroy Durand, from L’Illustration, 16 June 1860.

Sua segunda seção ia de Cachoeiras de Macacu até Nova Friburgo e foi inaugurada em 1873, 13 anos depois, por Bernardo Clemente Pinto Sobrinho, filho mais novo do barão de Nova Friburgo, que encontrou uma boa solução para transpor as altas montanhas de Friburgo. Era a mais nova conquista da engenharia da época, que tinha acabado de ser testada no Monte Cenis, na França: o sistema Fell.

Trem da Mont Cenis Railway Company. Foto: Wikiwand (imagem colorida e restaurada por IA)

Faremos uma pausa aqui para falar do sistema Fell, que na época era uma novidade e que possibilitou a subida da serra, sendo a primeira ferrovia do mundo a usar esse sistema: consistia na colocação de um terceiro trilho onde rodas montadas horizontalmente “prendiam” a locomotiva a esse trilho, vencendo as inclinações. Usava-se um trilho central elevado entre os dois trilhos habituais, para fornecer tração e frenagem extra. Os trens eram movidos por essas rodas ou freados por sapatas pressionadas horizontalmente no trilho central, bem como pelas rodas normais. Sapatas de freio extras eram instaladas nas locomotivas Fell.

O sistema Fell

A locomotiva possuía um motor auxiliar que acionava as rodas horizontais que se prendem ao terceiro trilho por pressão. O sistema Fell foi desenvolvido por volta de 1860 e logo foi substituído por vários tipos de cremalheiras, sistema de manutenção mais simples e com custo de manutenção e operação menores.

Este sistema foi projetado, desenvolvido e patenteado pelo engenheiro britânico John Barraclough Fell.

Fonte: The History of Gildersome

A inauguração desse trecho até Nova Friburgo foi um evento tão importante que contou com a presença do Imperador D. Pedro II. De Nova Friburgo, a ferrovia seguiu para Macuco, então distrito do município de Cordeiro, e posteriormente Portela.

Veja a cronologia das inaugurações:

  • Porto das Caixas: 1860
  • Nova Friburgo: 1873
  • Cordeiro: 1875
  • Cantagalo: 1876
  • Portela: 1890

Infelizmente, a manutenção desse sistema era muito dispendiosa. Muitos se perguntam, inclusive, os motivos do sistema de cremalheira da E.F. Teresópolis, desativada, anos antes, não ter sido transferida para a E.F. Cantagalo, como prometido na ocasião por dirigentes da RFFSA.

O DPP Trilhos do Rio, em suas expedições, encontrou inúmeros pedaços de cremalheiras, provavelmente oriundos da E.F. Teresópolis, espalhados em imóveis da região, servindo como batente de portão ou simplesmente como objeto de decoração.

Um exemplo de sistema de cremalheira em uma ferrovia do País de Gales. Fonte: Vecteezy

PORTO DAS CAIXAS

Em 1874, a Companhia Ferro-Carril Niteroiense concluiu o trecho ferroviário entre Niterói e Rio Bonito, iniciando uma operação conjunta com a E.F. Cantagalo. A Estação de Porto das Caixas deixou então de ser uma estação terminal para fazer parte da linha da Companhia Ferro-Carril Niteroiense que posteriormente foi absorvida pela então, Companhia Estrada de Ferro Leopoldina e se tornou um entroncamento, quando ela adquiriu a E.F. Cantagalo em 1887. Isso fez com que uma viagem de Nova Friburgo para a capital, que antes durava 4 dias, passasse a durar 4 horas.

Subida da Serra de Nova Friburgo. Fonte: coleção Octávio Mendes de Oliveira Castro (imagem colorida e restaurada por IA).

Lembrando que essa viagem terminava em Niterói, e de lá se pegavam as barcas para alcançar a capital. O contorno pela Baía de Guanabara ainda demorou anos a ser feito, concluído apenas em 1926. Contudo, em algum momento antes desse prolongamento da Companhia Ferro-Carril Niteroiense, a E.F. Cantagalo já tinha prolongado sua linha até a localidade de Villa Nova, na localidade de Tamby, atual bairro de Itambi, no atual município de Itaboraí. Essa estação, atualmente abandonada, tem enorme valor histórico, sendo provavelmente ainda a original!

Estação Itambi em 2010. Foto: Daddo Moreira.

O mapa abaixo mostra as localidades.

Mapa mostrando a região. Fonte: Biblioteca Nacional.

O motivo desse prolongamento é que esse porto em Itambi permitia a atracação de barcos maiores. Foi nesse porto que chegaram colonos suíços entre 1819 e 1820, que povoaram Nova Friburgo, um importante fato histórico para o Rio de Janeiro, mas não existe no local uma única e simples placa alusiva a isso.

Colonos suíços em Nova Friburgo. Foto: Arquivo pessoal Janaína Botelho.

Porto das Caixas chegou a ser conexão entre dois importantes trechos ferroviários: a Linha do Litoral e a própria E.F. Cantagalo. Os trens poderiam vir de Magé ou de Niterói, e em Visconde de Itaboraí escolher um destino ao chegar na próxima estação, que era Porto das Caixas: à direita, a linha seguia em direção ao Norte-Fluminense, e à esquerda subia a serra em direção a Nova Friburgo e demais cidades da região.

Estação de Porto das Caixas. Fonte: IBGE (imagem levemente colorida, e restaurada por IA)

Em 1877, a província do Rio de Janeiro encampou a E.F. Cantagalo e posteriormente a empresa foi vendida à Companhia Estrada de Ferro Leopoldina, como dito anteriormente. Em seguida, a Companhia Estrada de Ferro Leopoldina adquire uma ferrovia existente chamada de Companhia E.F. do Sumidouro. Essa ferrovia começava na estação de Melo Barreto, depois chamada de estação Entroncamento, localizada no município de Além-Paraíba, e seguia até Sumidouro, no Estado do Rio de Janeiro. Posteriormente, ela foi prolongada até a estação de Conselheiro Paulino em 1889, fazendo entroncamento com a E.F. Cantagalo.

Edição de 1887 da Revista Ilustrada com a compra da EF Cantagalo pela EF Leopoldina como tema de capa. Fonte: Acervo do Museu Imperial de Petrópolis.

ALERTA DE SPOILER: Essa informação é importante, e possivelmente poucas pessoas além da AFTR sabem, mostrando como a E.F. Cantagalo foi importante para o comércio do café mineiro, pois foi a partir desse desvio em Conselheiro Paulino que a produção cafeeira da época, da zona da mata de Minas Gerais, descia para o Rio de Janeiro para exportação. Apesar desse ramal ser extremamente sinuoso, não permitindo velocidades médias elevadas, e ter para o Rio de Janeiro quase a mesma distância da E.F. Melhoramentos, era por ali que descia a produção cafeeira de Minas Gerais.

Fazenda Providência, produtora de café na região de Leopoldina. Foto: Memória Leopoldinense (imagem colorida e restaurada por IA)

Das cidades atendidas pela E.F. Leopoldina, como Manhuaçu, Muriaé, Cataguases, entre outras, era uma viagem bem mais rápida e mais barata do que a feita pelo caminho da E.F. Melhoramentos, que passava por Miguel Pereira, construído por Paulo de Frontin, e o Sr. Ruy Barreto espertamente negociava seus fretes para passar por esse ramal.

Foto antiga de Manhuaçu-MG. Foto: Ache tudo e região (imagem colorida por IA)

O Sr. Winnfried Jordan, que foi diretor da antiga Spam – Sociedade Produtora de Alimentos Manhuaçu, além de produtor de gado leiteiro, foi um grande produtor de café da região e despachava seu produto de trem, e seu café também passava por esse ramal. Algo bem diferente do que foi dito em evento na ACRJ, uma gafe cometida por um ex-secretário de transportes, citada no começo deste artigo. É algo que de certa forma ocorre com frequência também entre os pesquisadores e curiosos sobre o assunto, mas que hoje tentamos desmistificar, quando as pessoas afirmam que os motivos da E.F. Cantagalo ter sido extinta foram por não transportar mais o café produzido nas cidades no entorno de Nova Friburgo, como Bom Jardim, Trajano de Morais, Duas Barras, Macuco e Santa Maria Madalena.

Esse café já não era produzido na região desde o início do século XX!
Segundo informações, em 1890 a monocultura do café nessas localidades já estava em decadência.

Prosseguindo, a Companhia Estrada de Ferro Leopoldina adquire posteriormente, em Macuco, uma grande propriedade e nela produz leite e gado de corte para transportar pela ferrovia. Essa fazenda funcionou até 2021 e se chamava Fazenda Benfica e atualmente faz parte do circuito cultural e turístico da região.

Fonte: Facebook

OS PRODUTOS TRANSPORTADOS PELA FERROVIA

O lucro da E.F. Cantagalo, posteriormente Companhia Estrada de Ferro Leopoldina, vinha do transporte geral, como o café de outras regiões, o leite das fazendas e outros produtos produzidos nas regiões por onde ela passava. Também eram transportados produtos têxteis e de confecção, como as calcinhas produzidas pela Fábrica de Rendas Arp e as pela Fábrica de Filó, além de produtos produzidos pela Haga e pela Fábrica Ypu, além das diversas outras empresas de Nova Friburgo existentes na época. A Fábrica Ypu possuía uma parada ferroviária própria, e nós recentemente publicamos uma notícia sobre o abandono desse trecho.

Os senhores Julius Arp e Maximilian Falck, fundadores respectivamente da Fábrica de Rendas Arp e da Fábrica de Filó (atualmente Triunph), resolveram montar suas indústrias em Nova Friburgo pela facilidade em transportar sua produção para o Rio de Janeiro e outras localidades por meio da ferrovia. A cidade de Nova Friburgo tinha cortumes que alimentavam a Fábrica Ypu. Os mais jovens podem não saber, mas devem conhecer a Rua do Curtume, no bairro Conselheiro Paulino, e a Anna Vince, no bairro Duas Pedras, que ainda hoje fabrica artigos de couro. E esse couro a ser beneficiado chegava de trem!

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Empresa Nacional de Cortume – ENCOL em Nova Friburgo. Foto: Anna Vince

Um desses cortumes em Nova Friburgo era a Empresa Nacional de Cortume Ltda. – ENCOL. A E.F. Cantagalo fazia parte da vida da cidade, passava pelo meio das ruas e não incomodava ninguém.

Fonte: Acervo Fundação João VI

A EXTINÇÃO DA FERROVIA

Sobre a extinção da ferrovia, acreditem, teve os mesmos motivos da E.F. Príncipe do Grão-Pará, que acessava Petrópolis: falta de investimentos em equipamentos novos e manutenção da via permanente, bem como falta de compromisso e seriedade com a empresa por parte de muitos de seus dirigentes.

Essa é a realidade.

No dia 15 de julho de 1964, os serviços foram paralisados, uma data que muitos moradores mais antigos de Nova Friburgo lembram com tristeza. A população ficou atônita ao ver os trilhos e dormentes sendo arrancados. A E.F. Cantagalo foi construída com um esforço monumental e acabou sendo destruída de uma forma covarde.

Remoção de trilhos e despedida do povo. Fonte: Pró-memória Sumidouro.

Não vamos estender o assunto por ser muito triste, literalmente de cortar o coração. Mas se houver interesse, cliquem neste link: ele mostra um artigo produzido pela AFTR há alguns anos mostrando a remoção dos trilhos da E.F. Cantagalo na região, na década de 1960

DIFERENÇAS ENTRE A E.F. CANTAGALO E A E.F. LEOPOLDINA

Sobre o “lucro” da E.F. Cantagalo, da E.F. Petrópolis e da própria E.F. Leopoldina, é preciso esclarecer algumas informações, normalmente omitidas: essas ferrovias, especialmente as construídas originalmente pela Companhia Estrada de Ferro Leopoldina (posteriormente “The Leopoldina Railway Company Limited” em 1897, quando foi liquidada e seus credores ingleses assumiram, depois “E.F. Leopoldina” a partir de 1950, quando foi encampada pelo governo federal) não primavam pela boa construção. Essa informação poucos comentam. As linhas não tinham britagem suficiente, as locomotivas recebiam manutenção deficiente, estações, como as fotos podem mostrar, eram construídas com uma simplicidade franciscana, e sem falar da ausência de manutenção na via permanente e nas locomotivas. Ah, não falamos dos golpes aplicados pelos diretores, mas isso é assunto para outra postagem.

Trem de subúrbio da EF Leopoldina em frame do documentário “Renasce a Leopoldina”. Fonte: Youtube Trilhos do Rio.

A E.F. Cantagalo pode-se dizer que foi um ponto fora da curva: a estação de Nova Friburgo era tão bonita que hoje é sede da Prefeitura da cidade. A estação foi projetada pelo arquiteto escocês Robert Prentice, que projetou também a estação Barão de Mauá e o Palácio da Cidade, sede da prefeitura do Rio de Janeiro, no bairro de Botafogo. A estação de cargas era o atual batalhão de polícia militar da cidade (já bem descaracterizado).”

Instalações da estação Nova Friburgo-Cargas. Fonte: Redes Sociais Trilhos do Rio (imagem colorida e restaurada por IA)
Estação Nova Friburgo-passageiros, atual prefeitura da cidade. Fonte: Redes Sociais Trilhos do Rio (imagem colorida e restaurada por IA)

No início de nossa postagem, falamos que a E.F. Cantagalo tinha um faturamento consistente por conta das cargas que transportava, mas infelizmente não era lucrativa. Isso decorria da total ausência de investimentos na linha e na compra de novas locomotivas, além de manter o sistema “Fell” até seu fim, nunca tendo mudado para cremalheira como os sistemas de Petrópolis e Teresópolis, o que gerava uma enorme despesa operacional e acabava resultando em prejuízo em seus balanços.

Fonte: Exito Rio (imagem colorida e restaurada por IA)

O vídeo abaixo mostra a decadência da E.F. Maricá, mas o mesmo se aplica à E.F. Cantagalo.

O CIMENTO E A FERROVIA

Mas a situação só piora: desde 1960, portanto antes da extinção da E.F. Cantagalo, já se fazia prospecção nas terras de Cantagalo, pesquisando seu potencial de calcário, e isso era público. Essa prospecção estava a cargo do engenheiro civil Penalva Santos, que realizou sondagens a mando da empresa Tecnosolo, especializada na atividade. O veio de calcário prospectado segue até o sul da Bahia, mas em Cantagalo está ao nível do solo, facilitando muito a produção e permitindo que as empresas da região o explorem por pelo menos mais 100 anos.

Fonte: Jornal da Região

Em meados de 1966, a Companhia Nacional Cimento Portland já possuía terras na região de Cantagalo, de onde extraía calcário para sua fábrica em São Gonçalo. Eram transportados em média 30 caminhões de calcário por dia de Cantagalo para a fábrica de Guaxindiba. Esse calcário poderia ser despachado por trem, uma vez que a fábrica de Guaxindiba em São Gonçalo ficava próxima à linha de trem que ia para Itaboraí, tendo inclusive nesse ramal uma estação de nome Guaxindiba que servia, além da população local, aos funcionários da fábrica.

Publicado por Mobilidade Fluminense no Twitter

Na década de 1970, mais precisamente em 28 de novembro de 1970, foi inaugurada a Fábrica de Cimento Alvorada, a primeira das três fábricas que seriam inauguradas na região. Em 1975, foi inaugurada a Fábrica de Cimento Votorantim. Em 1982, foi inaugurada a Fábrica de Cimento Mauá. O grupo empresarial fabricante do Cimento Mauá foi o último grupo cimenteiro a colocar em funcionamento uma fábrica de cimento na região.

Fonte: divulgação

Propaganda institucional feita pelo grupo cimenteiro Companhia Nacional Cimento Portland, quando da inauguração da Fábrica do Cimento Mauá, em Cantagalo em 1982 A E.F. Cantagalo, se estivesse ativa atualmente, estaria transportando, além de produtos de Minas Gerais, o cimento produzido nessas fábricas.

Fonte: divulgação

NOVO ALERTA DE SPOILER: Em 1982, o autor deste texto esteve com pessoas ligadas a essas fábricas, e havia interesse em construir, em paralelo ao asfaltamento da RJ-148 que estava sendo feito pelo governo do estado do Rio de Janeiro, uma linha ferroviária entre Cantagalo e Além-Paraíba, reconstruindo assim um trecho importantíssimo e extinto da E.F. Cantagalo. A construção desse trecho seria paga pelas fábricas de cimento, interessadas em fazer com que a escória de alto forno necessária para a fabricação do cimento CP III, que vinha e continua vindo de caminhões de Volta Redonda, passasse a vir em trens da RFFSA. Era preciso o apoio político do governador do estado. Afinal, em 1980, foi tentado pelo mesmo grupo restaurar a E.F. Cantagalo em seu eixo principal, e a RFFSA não permitiu, sob a alegação de que ela detinha o monopólio, e só ela poderia reconstruir o trecho.

Fonte: Google Earth

Brandão Monteiro, o então secretário de Transportes, e Leonel Brizola, o então governador, não se interessaram.

A RECONSTRUÇÃO DA E.F. CANTAGALO E BENEFÍCIOS PARA RJ E MG.

Uma consulta simples ao Google mostra que a distância rodoviária entre Ubá-MG e Santos-SP é de 642 km; entre Ubá-MG e Niterói-RJ com trajeto pela BR-040 e circundando a baía de Guanabara, é de 314 km; e entre Ubá-MG e o Rio de Janeiro, com trajeto pela BR-040, é de 308 km. Observem os mapas:

Trajeto Ubá-MG x Niterói-RJ
Trajeto Ubá-MG x Santos-SP
Trajeto Ubá-MG x Rio de Janeiro-RJ

Consideramos aqui apenas a distância de Ubá-MG, uma das cidades atendidas pelas antigas linhas da linha da E.F. Leopoldina, mas o que diremos aqui vale para todas as cidades da região. E mesmo se considerarmos que os produtos da região pudessem ser levados para o porto de Vitória, ainda seriam 411 km de distância, então ainda temos o Rio de Janeiro ainda como trajeto mais curto.

Ubá tem um polo moveleiro, que seria beneficiado pela reconstrução da E.F. Cantagalo

Antes de continuarmos faremos algumas perguntas:

Estamos no século XXI, com novas tecnologias em todas as áreas, inclusive na agricultura, e isso tem incentivado diretamente a cultura do café que está renascendo na região de Bom Jardim e Duas Barras, em uma variedade premium…

  • Como estará hoje a produção de café naquela região de Minas Gerais?
  • E a de outros produtos, sejam agrícolas ou industriais?
  • Como esses produtos estão sendo escoados?
  • Quem os está comprando?

Caso aquela região de Minas Gerais ainda produza café para exportação, qual a lógica de exportar pelo porto de Santos ou até mesmo pelo Espírito Santo, podendo, com a restauração da E.F. Cantagalo, ser exportado pelo porto do Rio de Janeiro ou pelo de Niterói?

VEJA TAMBÉM  O Gordini e as locomotivas a vapor. O que ambos têm em comum?
Embarque de café no Porto de Santos-SP. Fonte: Brasiliana Fotográfica (imagem colorida e restaurada por IA)

Além disso, o grupo Votorantim é dono de minas de bauxita próximas ao município de Miraí, em Minas Gerais, e talvez se interessasse em entrar no segmento ferroviário. Já apresentamos inclusive uma proposta que poderia interessar aos executivos deste grupo empresarial e poderia interessar mais ainda a outros empresários dessa região mineira, sempre pensando em operar ferrovias em Minas Gerais e desembocando no Rio de Janeiro em algum porto. Essa ideia do século XIX, com o início da E.F. Cantagalo em Porto das Caixas, para escoar os produtos transportados pela ferrovia, não mudou nada agora no século XXI.

Aos leitores, entendam uma coisa: somos vizinhos de um estado-maior que a França que não tem saída para o mar. Além disso, temos aqui no estado do Rio de Janeiro, na região metropolitana que abrange as cidades no entorno da baía de Guanabara, segundo o IBGE, uma população de mais de 11 milhões de pessoas, 11 milhões de consumidores.

Podemos com tais iniciativas restaurar “O Estilo Leopoldina de Ser

AS AÇÕES PRÓ-FERROVIA EM MINAS GERAIS

A muito comentada e recente Frente Parlamentar pró-ferrovias de Minas Gerais serviu para alguma coisa? Curiosamente, nem o líder à frente do processo, o ex-deputado João Leite, foi reeleito. Essa frente nasceu com um vício de origem: tinha ótimas intenções, mas era assessorada por pessoas não tão conhecedoras do setor assim, em sua maioria ex-funcionários subalternos da RFFSA, a empresa que nunca deu lucro, era um cabide de empregos e prestava um péssimo serviço a seus clientes.

Ferrovia é um negócio, como sempre dizemos.

Nenhum resultado prático foi produzido pela comissão, além do relatório, e o papel aceita tudo, até as coisas mais estapafúrdias. Na entrega do relatório e na ausência de resultados práticos para apresentar, o ex-deputado João Leite fez um discurso de certa forma genérico e inconclusivo, na verdade, um discurso político.

Abaixo está o relatório, subjetivo, disponível para leitura:

Relatório Comissão Pró-Ferrovias-MAR19

Os assessores citados propuseram a restauração das ferrovias dentro do estado de Minas Gerais, sem conexão com o Rio de Janeiro e seus portos, e não procuraram empresários para investir, o que é bastante simplório.

Mas que empresário sensato pensaria em restaurar ferrovias em Minas Gerais se não puder conectá-las ao Rio de Janeiro? Mas tem um detalhe nisso…

O Porto do Rio de Janeiro seria o responsável pelo próprio fracasso.

RESUMO DA HISTÓRIA DOS PORTOS DO RIO DE JANEIRO.

A seguir, apresentaremos um resumo da história do Porto do Rio de Janeiro e os motivos que fizeram o Porto de Santos-SP ser o que é, bem como os motivos que fazem o Porto do Rio de Janeiro continuar sendo um porto de pequeno porte.

Panorama do porto e da cidade de Santos em 1935 Foto: reprodução do livro “Docas de Santos – Suas origens, lutas e realizações”, de Hélio Lobo, Typ. do Jornal do Commercio – Rodrigues & C. – Rio de Janeiro/RJ, 1936 (acervo do historiador Waldir Rueda) (foto colorida e restaurada por IA)
  • O Porto do Rio de Janeiro foi oficialmente inaugurado em julho de 1910 e passou a ser administrado pela empresa Demart & Cia, Posteriormente pela Compagnie du Port do Rio de Janeiro (1911 a 1922)
  • Em seguida, pela Companhia Brasileira de Exploração de Portos (1923 a 1933).
  • Pela Lei nº 190, de 16/01/1936, durante o governo de Getúlio Vargas, foi criada a Administração do Porto do Rio de Janeiro, uma autarquia federal que recebeu as instalações portuárias em transferência do Departamento Nacional de Portos e Navegação, do Ministério da Viação e Obras Públicas.
  • Posteriormente, o Decreto nº 72.439, de 09/07/73, aprovou a criação da Companhia Docas da Guanabara, atualmente conhecida como Companhia Docas do Rio de Janeiro ou Docas do Rio Autoridade Portuária.

Observem que desde a década de 30 o porto do Rio é administrado por uma estatal.

Porto do Rio de Janeiro. Foto de Postal (imagem colorida e restaurada por IA)

Mas sempre há mais problemas: O porto de Niterói, que poderia ser usado para receber cargas de Minas Gerais pois além de já existir, não é sujeito a ventos como o porto de Açu, está subutilizado e permite a atracação de navios que não são os super graneleiros que são usados atualmente, pois o tipo de carga que poderia receber não demanda esses navios. Na época da construção da ponte Rio Niterói, um dos pilares precisava passar pelo local onde passava a linha do trem. Em vez de reconstruí-la em outro local, a linha foi simplesmente retirada.

Coisas de Brasil

Enquanto isso, o porto de Santos-SP foi operado por uma empresa privada de propriedade da família Guinle, empresários, durante 100 anos. Embora o porto já existisse desde o século XVI, foi em 1890 que Cândido Gaffrée e Eduardo Guinle ganharam a concessão para operar o porto e criaram a Companhia Docas de Santos, transformando o porto de Santos no maior da América Latina. Está explicado o motivo do sucesso do porto de Santos?

Porto de Santos-SP. Coleção Benício Guimarães (imagem colorida e restaurada por IA)

HOMENAGEM

Abaixo, foto do Sr. Ruy Barreto:

Foto: ACRJ

Foi por duas vezes presidente da ACRJ e um dos maiores exportadores de café do Rio de Janeiro. Alguém que muito nos ensinou sobre o passado de nosso estado.

Abaixo, texto do CCFRJ – Centro de Comércio de Café do Rio de Janeiro, onde ele fala um pouco de sua própria história, que se confunde com a história do Rio de Janeiro.

http://www.cccrj.com.br/rio/orgulho.htm

Ao Sr. Ruy Barreto, falecido aos 95 anos em fevereiro de 2022, um agradecimento póstumo pelo muito que tentou fazer pelo nosso estado e pelo muito que nos forneceu de informações sobre sua jornada profissional, que se confunde com a ascensão e queda das ferrovias em nosso estado. Nosso muito obrigado.

CONCLUSÕES

É extremamente desagradável ser repetitivo, como se dizia antigamente como “discos arranhados“, mas esse episódio envolvendo a extinção da E.F. Cantagalo não seria mais um relativo à “Guerra das Bitolas”?

Uma ferrovia que não dependia do café da região e trazia por ela café do sul de Minas Gerais, além de transportar cargas da região por onde passava.

Uma cidade, no caso Cantagalo, que no início da década de 1960, já sabia de seu potencial geológico e estava em tratativas para instalar ali sua primeira indústria de cimento.

Uma fazenda que produzia leite e gado, de propriedade da E.F. Leopoldina e que não sabemos o que produz hoje, e mesmo assim, com tudo isso, com todas essas potencialidades foi extinta?

Por quê?

Pensem.

Obrigado a todos os que chegaram aqui.

Recomendamos que os links sugeridos sejam vistos também por explicarem tópicos tratados aqui.

AGRADECIMENTOS:

Ao site estações ferroviárias do Brasil, e a Ralph Mennucci Giesbrecht, seu criador. http://www.estacoesferroviarias.com.br/

A Allen Morrison, pesquisador já falecido, foi o maior pesquisador de bondes no mundo.

Ao site Viação Centro Oeste Ferrovias http://vfco.brazilia.jor.br/ferrovias-do-brasil.shtml

A historiadora Vanessa Melnixenco moradora de Nova Friburgo

Ao site https://journals.openedition.org/terrabrasilis/9219

Ao nosso associado Marcio Cardoso, que fez diversos mapas no google, que foram extremamente úteis na confecção desse artigo.

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Autor

  • Mozart Rosa

    Iniciou sua carreira profissional em 1978 trabalhando com um engenheiro que foi estagiário da RFFSA entre 1965 e 1966, que testemunhou o desmonte da E.F. Cantagalo e diversas histórias da Ferrovia de Petrópolis. Se formou Engenheiro Mecânico pela Faculdade Souza Marques em 1992, foi secretário-geral Trilhos do Rio no mandato 2017-2020 e atualmente ocupa o cargo de redator do site, assessor de contatos corporativos e diretor-técnico.

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